Pema Chödrön
Que bom seria se a preocupação de uma mulher fossem os nascimentos, cordões, placentas, nosso sangue puro que sustenta uma vida por 9 meses e não o medo de sofrer alguma violência no hospital ou a triste constatação como eu tive, que a experiência de parir é reduzida logo depois que você recebe sua filha, e a sua menina já é de certo modo propriedade seja do sistema com suas picadas, dos títulos familiares, cartórios, dos testes, das medidas, etc.; e você mulher anulada e esquecida com as suas dores do corpo e da alma. A vida continua, não há tempo para ser simplesmente mulher expandida, em sua forma mais potente, seu canal para a vida na terra, para o feminino. Essa memória ancestral de paz, tranquilidade, naturalidade na maternidade é um fóssil de um animal que não existe mais há milênios, você só imagina, mas nunca viu ou verá...ou talvez eu prefira a idéia de uma memória congelada, com a possibilidade de voltar a vida com calor, amor, um resgate profundo de si mesma ( isso soa mais como um sonho do que uma realidade, ou uma esperança que a palavra resgate traz...).
Sou uma mulher singular, profunda e esquisita. Sou do grupo das esquisitas, sempre me senti uma estrangeira na minha própria terra, família. Hoje sei que faz parte do meu desenvolvimento espiritual, humano aqui, mas cada dia o mundo fica mais estranho do que costumava ser, e sinto que não encontro ressonância com nada e com ninguém por estes tempos, como se não houvesse uma única alma para sentir o que quer que seja. Efeito Lilith em mim...
Para mim nenhuma palavra consegue captar o que tenho passado desde o nascimento da minha filha. Ela me trouxe uma dimensão completamente desconhecida de mim, da minha alma e do meu corpo e abriu uma caixa de Pandora na minha psique. Medos que jamais havia pensado sentir, uma impotência, fragilidade que a linguagem que eu fui ensinada não é capaz de expressar. Eu sinto o temor e o cansaço das minhas ancestrais. Tudo bem, eu sei que pedi cura, pedi para compreender o porque de eu ter sido uma menina desajeitada, ignorada nas suas emoções profundas e negligeciada nos seus anseios. E para sobreviver a tudo isso me tornei uma espécie de mística artista raivosa. Ou para alguns uma guerreira.
Essa é uma constante busca por mim mesma, carregando esse vazio de gerações de mães e filhas indisponíveis para o amor e todo o lixo psíquico que estou tentando me livrar familiar, tudo ao mesmo tempo, encarar as coisas feias enquanto a vontade é sair correndo, procurar harmonia no meio dessa fenda profunda que Esprranza abriu na minha vida.
É uma travessia e estou novamente sozinha, eu sempre estive. É mais que um pós-parto, é um pós-vida, troca de pele, é a vida-morte-vida. E eu preciso aceitar a morte do que fui e do que não pude melhorar em todos os aspectos da minha caminhada até aqui. Sim porque no fundo não sou tão derrotista, apesar de me portar dessa forma para me proteger das decepções. Nunca soube o que era bom, tranquilo, normal. Vivi com caras feias, conflitos, carências e coisas muito sérias em que foi feito vista grossa pelas mulheres. Tudo isso só leva a um lugar: depressão. E eu não quero parar lá. Por isso tenho que fazer as limpezas, aquelas que não gostamos, que levam tempo e precisam de produtos especiais.
Pânico, gritos sufocados, medo de ser violada, medo que violem sua filha e você não possa fazer nada, medo de morrer e você não poder acompanhar o crescimento do seu precioso bebê e viver as fases e vibrar de alegria, medo de perder o vínculo com ela, que não goste de mim, que não tenhamos afinidade, que ela se sinta tão incompreendida e solitária como eu, que não confie em ninguém, assim como hoje vivo minhas dores sem um rosto caloroso feminino para me transpassar e simplesmente estar ali, olho a olho, alma a alma comigo. Eu nunca senti isso, a ferida materna dói, a abandono emocional, a rejeição...eu ignorei tudo isso estudando, me projetando para o mundo e a maternidade me trouxe um território completamente desconhecido, como se pela primeira vez eu sentisse o que é ser mulher, ter útero, sentir o mundo a partir de um novo lugar dentro de mim que foi desperto, com intuição, com amor, magia, como ver através das brumas... Como podemos nascer mulheres e viver negando o que somos? Projetadas para a carreira, o dinheiro, casamentos, para o homem ( seja o marido, chefe, o padre,o pastor, o médic, etc.), pesos e medidas, o sucesso tão cobrado das mulheres que hoje podem tudo, menos conhecer a dimensão do que nos foi tirado, nossa essência feminina. Das minhas ancestrais, recebi que meu crescimento pessoal, beleza ou qualquer coisa que torne minha vida melhor que a delas incomoda, que as mulheres são rivais entre santas e putas, e eu por não ser vulgar, ser uma mulher séria ainda sou bem vista, mas fora isto há toda uma invisibilidade perante a negação de amor que cada uma recebeu de suas mães. Hoje mesmo quando minha criança interior chora não há para onde correr, aquela dor nos ossos, o mundo sobre os ombros. E aí é então onde a mulher que desconheço tem que se levantar, não mais como uma guerreira, e sim com essa sabedoria oculta em mim, aprender sobre cuidado, amor, autosacrificio, morte do que aprendi que poderia ser ou do que signifique sucesso para uma mulher hoje, e seguir paciente, chorar o que precisar, e retomar a vida com sua beleza, com a amor desinteressado que recebo da minha filha e me tornar uma mulher inteira por mim, por ela. Sei que vou encontrar o que é mais essencial de mim, e sei também a solidão dessa escolha. Já estamos nos habituando uma a outra, estamos construindo algo bom, sólido e cada dia tão impermanente, como o que escrevo e sinto agora.